Do minúsculo vidro transparente
da janela que divisa a parede da edícula
vejo-o se alimentar dos restos
come, sem pestanejar e oferece a seus rebentos
Seu olfato a muito viciado, não permite o enjoo
o bicho mastiga, sem saborear, devora e engole
fitando nos olhos a companheira dessa e de outras,
não hesita, não para, só come e consente, calado
que dia triste este que me encontro,
que hora longa, essa que não passa
e este pobre bípede, sobrevivente
que se alimenta sem parar
não vejo, senão, sua fome voraz
que ultrapassa o inimaginável,
que fome audaz a transmutar este pobre
bicho racional, que segue sem raciocínio
e come e guarda, não há filtros ou exames
tudo lhe serve, já que nada tem.
Ouço os seus comados imperativos a determinar
sempre em direção aos pequenos; vamos, vamos
II - Cai a chuva:
Ainda pelo minúsculo vidro transparente da janela
vejo a chuva fria que agora cai e molha as suas poucas vestes
os pingos d’água, derribados pela sua fronte, constantes
chegam as suas pálpebras como lágrimas atrozes
Me pergunto: por quanto tempo e, em quantas vozes
sofre esse animal em silêncio, pastor de seu rebanho?
para onde irá? se lhe foi regalado o dom da vida errante!
quem lhe socorrerá? quem o livrará da angustia de viver e nada ser?
Molha-se o tempo todo com as águas que sobram do céu
molham-se; sua companheira e sua prole, e comem
e se vestem com os restos dos descartes dos hospitais
o vento fresco, quase gélido, lhe faz pensar na noite,
na espera de um agasalho que lhe livre a dor do frio,
segue sofrendo, comendo, sem critérios ou filtros.
É o medo de morrer de fome que pouco a pouco
lhe presenteia com a morte e lhe escreve a irremediável
sentença abrupta de viver em dias contados.